BRAHMA,VISHNU E SHIVA : TRINDADE OU NÃO TRINDADE ?


13 I (artigo - semideuses e semideusas) Brahma, Vishnu e Shiva, Trindade ou Não Trindade (2000)

Brahma, Vishnu e Shiva: Trindade ou Não Trindade?

Eis a questão.

As três divindades Brahma, Vishnu e Shiva se tornam cada vez mais conhecidas fora da Índia. Não é incomum encontrarmos suas retratações, em pinturas ou esculturas, em escolas de yoga, restaurantes vegetarianos e outros estabelecimentos com afinidade pela Índia.
Essas três personalidades, por vezes unidas pelo termo sânscrito trimurti ou pelo termo consagrado em português “trindade hindu”, saltam dos catálogos de tatuagem para a pele de homens e mulheres: Brahma com suas quatro cabeças, Vishnu com Sua característica cor azul e Shiva com cabelos que lembram os dreadlocks dos fãs de reggae.
Seus nomes também, curiosamente, foram associados a diferentes bebidas alcoólicas. A cerveja Brahma é muito popular no Brasil e tem ligados à sua marca os dizeres “a número um”, em referência a Brahma ser a primeira criatura do universo, isto é, “a número um”. Embora mais desconhecidas, existem também a cerveja Vixnu, cujo logo é um urso de quatro braços – o mesmo número de braços que tem Vishnu –, e a cerveja Shiva.
Como é comum com muitas outras coisas que recebemos, embora o trimurti esteja permeando nosso imaginário, nossa decoração e até as bebidas daqueles afeitos a esse tipo de consumo, a maioria de nós desconhece quem realmente são Brahma, Vishnu e Shiva. Ou, pior, temos um entendimento equivocado de quem são – sim: conhecimento errôneo é pior do que ignorância. A convite, então, apresentaremos essas três personalidades segundo são de fato apresentadas no corpo literário de Vyasadeva, o sábio que compilou em textos escritos a tradição oral da Índia antiga e apresentou sua conclusão no Vedanta-sutra e no Srimad-Bhagavatam.

Trindade

Os cristãos trinitários, como os católicos, têm o conceito de um só Deus que Se manifesta em três formas. Na definição do conceituado dicionário de língua portuguesa Houaiss, trindade é “um conjunto de três entidades, seres, objetos etc. de igual natureza”. Isso certamente se aplica ao conceito de trindade apresentado pelo catolicismo, uma vez que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são todos Deus – nenhum dEles não é Deus e tampouco há três Deuses.
Esse conceito, no entanto, como veremos, não está presente entre as personalidades Brahma, Vishnu e Shiva, em virtude do que, embora possam ser apresentados como um grupo de três por terem algo em comum, como veremos, não podem ser apresentados como uma trindade, pois cada um goza de um status ontológico, ou uma natureza inalienável (tattva, em sânscrito), diferente.

O que os Une?

Os três podem ser agrupados, e tradicionalmente o são, por cada um ser responsável por um dos três aspectos da existência deste mundo, que existe em três fases, a saber, criação, manutenção e destruição. Brahma é incumbido do afazer de criar este mundo, Vishnu tem o dever de mantê-lo, e Shiva, de destruí-lo quando assim for apropriado. O trio, portanto, é conhecido como guna-avataras, ou “personalidades que descem a este mundo para controlar os gunas”. Os gunas[1], chamados em português de “modos”, são as três energias mais fundamentais deste mundo, que regem desde nossos pensamentos e preferências alimentares, até a formação de diferentes corpos e planetas. O guna da paixão, caracterizado por criação, movimento e energia, fica sob os cuidados de Brahma, o criador. O guna da bondade, caracterizado por estabilidade, constância e paz, fica sob os cuidados de Vishnu, o mantenedor. O guna da ignorância, por sua vez, fica sob os cuidados de Shiva, o destruidor. Pela atuação dessas três divindades, por conseguinte, o universo que habitamos é criado, mantido e destruído. E, dentro desse intervalo, várias coisas dentro dele também são criadas, mantidas e destruídas.

O que os Distingue?

O que une Brahma, Vishnu e Shiva, entretanto, para por aí. Quando buscamos compreender a natureza deles e a origem deles, as diferenças falam alto.

Brahma

Brahma não é Deus. Em verdade, não é nem mesmo “um deus”, com “d” minúsculo, senão que “Brahma” é meramente um cargo, assim como, em nossa sociedade, temos os cargos de “presidente”, “governador”, “ministro”, “diretor”, “técnico da seleção” etc. Assim como podemos chamar o presidente do Brasil de “presidente”, podemos chamar a alma que ocupa o cargo temporário de Brahma de “Brahma”, mas, na verdade, o cargo e o indivíduo são diferentes, nos dois casos. Os Puranas, e até mesmo o conciso Bhagavad-gita, explicam-nos que o universo material, o universo que habitamos, é criado e destruído repetidamente. Assim, quando acontece a criação, as almas que aceitam diferentes corpos ali não estão sendo criadas, senão que já trazem consigo experiências e atributos de outras vidas em outras criações. E é precisamente a alma mais grandiosa da criação anterior que assume o cargo de Brahma para dar início a uma nova criação. Assim como, para assumir a posição de presidente de um país, existem várias exigências, como receber determinado número de votos, estar ligado a um partido etc., a posição de Brahma é ocupada de acordo com alguns requisitos. No Bhagavata Purana, a última obra escrita por Vyasadeva, e portanto sua conclusão sobre tudo o que apresentou, encontramos no verso (4.24.29) a seguinte explicação:
sva-dharma-nisthah śata-janmabhih pumān viriñcatām eti
“Permanecendo fixo no cumprimento de seus deveres pessoais ao longo de cem vidas, o indivíduo obtém o posto de Brahma”.
Assim como esse posto é obtido, ele é perdido, o que se dá, em geral, quando o universo é destruído.
A origem tanto de Brahma como de seu poder de criação do universo também demonstram sua natureza de “não-Deus”, haja vista que Deus é, por definição, aquele que gera sem ser gerado e a fonte de todo poder. Brahma é gerado do umbigo do Senhor Vishnu, que é, como veremos, o Senhor Supremo. Do umbigo do Senhor Vishnu, descreve o capítulo 9 do segundo canto do Bhagavata Purana, brota uma flor de lótus, sobre a qual nasce Brahma. Brahma, ao despertar ali, olha ao redor e vê apenas escuridão e o lótus abaixo de si. Ao procurar pela origem do lótus, descendo pelo caule, Brahma nada encontra e fica assustado. De volta ao topo do lótus, ouve duas sílabas faladas pelo próprio Senhor Supremo: “ta” e “pa”, que significam “austeridade”. O significado dessas duas sílabas era que, para Brahma receber o conhecimento que queria – “Quem sou?”, “Qual o meu papel na existência?” –, deveria se submeter. Brahma, então, medita seriamente sobre o lótus, até que finalmente é recompensado:
tasmai sva-lokaḿ bhagavān sabhājitahsandarśayām āsa paraḿ na yat-param
“Vishnu, estando assim muito satisfeito com a penitência de Brahma, quis manifestar-lhe Sua morada pessoal, Vaikuntha, o planeta supremo acima de todos os outros”. (Bhagavata Purana 2.9.9)
Depois de narrar que Brahma viu o próprio Reino de Deus, acima do mundo ora criado, ora destruído, descreve-se a reação de Brahma e como Deus o investiu de poder, satisfeito com suas práticas de rendição a Deus.
tad-darśanāhlāda-pariplutāntarohrsyat-tanuh prema-bharāśru-locanahnanāma pādāmbujam asya viśva-srgyat pāramahaḿsyena pathādhigamyatetaḿ prīyamānan samupasthitaḿ kaviḿprajā-visarge nija-śāsanārhanan
“Brahma, vendo então Vishnu em Sua plenitude, estava com o seu coração dominado pela alegria, e assim, em pleno amor e êxtase transcendentais, ficou com os olhos cheios de lágrimas de amor. Ele então se prostrou diante do Senhor. Eis o caminho da mais elevada perfeição para o ser vivo. E vendo Brahma diante de Si, o Senhor considerou-o digno de criar os seres vivos, que Ele controlaria conforme julgasse apropriado”. (Bhagavata Purana 2.9.18-19)

Vishnu

Diferentemente de Brahma, Vishnu não é um cargo ocupado por uma alma, senão que Vishnu é simplesmente o nome do Senhor Supremo, a Verdade Absoluta. Vishnu significa literalmente “Onipresente”, um atributo do Deus Supremo também na tradição abraâmica.
Como vimos, Vishnu foi quem gerou Brahma e quem, satisfeito com as austeridades de Brahma, conferiu-lhe a permissão de ser a divindade criadora. Como vimos também, Vishnu mostrou a Brahma Sua morada fora da criação, chamada Vaikuntha (literalmente, “o lugar onde inexistem ansiedades”, em referência a todo tipo de ansiedade, como nascimento, doença, velhice, morte ou falta de amor).
Shankaracharya, o famoso reformador pós-budismo, cita o Srimad-Bhagavatam 12.13.1 ao final de seu famoso poema Gita-dhyanam. Nesse verso, glorifica-se aquele que é adorado por todas as demais divindades, entre as quais são citados Shiva e Brahma, destacando a natureza subordinada de ambos.
ya brahmā varuendra-rudra-maruta stunvanti divyai stavair
vedai
ga-pada-kramopaniadair gāyanti ya sāma-gā
dhyānāvasthita-tad-gatena manasā paśyanti ya
yogino
yasyānta
na vidu surāsura-gaā devāya tasmai nama
“Àquela personalidade que Brahma, Varuna, Indra, Rudra [Shiva] e os Maruts louvam entoando hinos transcendentais e recitando os Vedas com todos os seus corolários, pada-kramas e Upanishads, a quem os recitadores do Sama Veda sempre cantam, quem os yogis perfeitos veem dentro da mente após fixarem-se em transe e absorverem-se nEle, e cujo limite jamais pode ser encontrado por nenhum semideus ou demônio – a essa Suprema Personalidade de Deus eu ofereço minhas humildes reverências”.
Uma vez que o Srimad-Bhagavatam traz a conclusão de um pensamento desenvolvido longa e anteriormente, esse entendimento tem de estar presente nas obras anteriores a ele também, naturalmente. E de fato encontramos versos como estes:
eko vai nārāyaa āsīn na brahmā na īśāno nāpo nāgni-somau neme dyāv-āpthivī na nakatrāi na sūrya:
“No princípio da criação, só existia Narayana [outro nome de Vishnu]. Não havia Brahma, nem Shiva, nem fogo, nem Lua, nem estrelas no céu, nem Sol”. (Mahā Upaniad 1.2)
nārāyaa paro devastasmāj jātaś caturmukhatasmād rudro ’bhavad deva
“Narayana [Vishnu] é o Deus Supremo, e dEle nasceu Brahma, que tem quatro cabeças, e de Brahma nasceu Shiva”.
Shiva
Neste ponto talvez já esteja evidente que Shiva é, assim como Brahma, subordinado a Vishnu, mas qual é seu status se não é como o de Brahma?
Shiva é, tecnicamente, uma expansão de Vishnu que entra em contato de alguma forma com o mundo material. Enquanto Vishnu é totalmente transcendental, Shiva entra em contato com os gunas, ou as três qualidades materiais de bondade, paixão e ignorância. O Srimad-Bhagavatam descreve:
harir hi nirgua sākāt
puru
a prakte para
sa sarva-d
g upadraṣṭā
ta
bhajan nirguo bhavet
“Hari [outro nome de Vishnu] é deveras e diretamente livre dos gunas. Ele é o Senhor Supremo, a testemunha eterna, transcendental e que tudo vê. Aquele que O adora torna-se similarmente livre dos gunas”. (Srimad-Bhagavatam 10.88.5)
śiva śakti-yuta śaśvat
tri-li
go gua-savta
“Shiva está sempre unido à sua energia pessoal, a natureza material [shakti], e manifesta-se em três aspectos em resposta às solicitações dos três gunas”. (Srimad-Bhagavatam 10.88.3)
Assim, Shiva é um Vishnu “modificado” pelo contato com os gunas. A Brahma-samhita (5.45) diz isso de forma mais poética ao comparar o Senhor Supremo ao leite, os gunas aos ácidos que transformam o leite em iogurte, e Shiva ao iogurte.
kīra yathā dadhi vikāra-viśea-yogāt
sañjāyate na hi tata
pthag asti heto
ya
śambhutām api tathā samupaiti kāryād
govindam ādi-puru
a tam aha bhajāmi
“Adoro o Senhor primordial, que se torna a forma de Shiva, personalidade esta tida como não diferente do Supremo e, ao mesmo tempo, tida como diferente em virtude de seu contato com as transformações da natureza material, assim como pela ação de ácidos o leite se torna iogurte, que pode ser considerado como igual à sua causa, o leite, porém age de maneira diferente”.

Trindade ou Não Trindade?

Conclui-se, portanto, que Brahma, Vishnu e Shiva não são uma trindade, isto é, não são três formas de um Deus. Corretamente, entende-se que Vishnu é o Senhor Supremo, ao passo que Brahma e Shiva Lhe são subordinados. Mais detalhadamente, vimos também que Brahma e Shiva são subordinados a Vishnu porém gozam de status diferentes, sendo Brahma uma alma muito avançada que assumiu um cargo importante no universo, e Shiva, uma expansão de Vishnu que entra em contato com o mundo material e assim assume uma outra forma, um outro nome e um outro status.
Aqui apresentamos o entendimento do Bhagavata Purana uma vez que, como já dissemos, é a última palavra de Vyasadeva depois de ter revisado toda a tradição oral da Índia antiga. O Bhagavata Purana, e a tradição védica em si, também gozam de mais respeito e prestígio do que outras tradições e indivíduos que opinam sobre este assunto. Vyasadeva, ademais, é uma encarnação do próprio Senhor Krishna e discípulo de Narada Muni. Assim, com a apresentação deste, esperamos estar contribuindo com a difusão de conhecimento transcendental abalizado.
Om Tat Sat.

Por Bhagavan Dasa

Fonte:http://voltaaosupremo.com/artigos/artigos/brahma-vishnu-e-shiva-trindade-ou-nao-trindade/

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