ZAZEN: A POSTURA QUE REFLETE O UNIVERSO

mudraZuisei1.jpgZAZEN: A POSTURA QUE REFLETE O UNIVERSO
 
O zazen, a meditação Zen que foi codificada pelo movimento de renovação do budismo japonês - em particular as Escolas Soto e Rinzai -, encarna de forma tão radical o espírito do Zen que mestres costumam dizer que "o Zen é simplesmente zazen". Para Dogen, o criador do Soto, a postura em si já era o satori. Sua simplicidade, no entanto,está fundada em princípios que se interligam e são, muitas vezes, paradoxais:“A postura do zazen possui o universo inteiro, inclui todas as contradições". No texto escrevo sobre minha experiência e interpretação pessoal desses princípios.
 
Pratico zazen (prática de meditação do Zen Budismo), segundo a tradição Soto. Não sou budista, sou uma praticante de Choy Li Fut [1]. Como contraponto a minha tendência cerebral, o Zen me atraiu porque nele o que importa é como agir: Dogen [2] afirmava que o ato deve preceder o pensamento.
O zazen de cada um é diferente. A algumas pessoas bastam as orientações de seu mestre sobre a postura. Eu, no entanto, precisei me debruçar sobre os conceitos para me sentir digna do zafu – devo dizer que esta é uma atitude, em tese, anti Zen, mas o Zen não está muito preocupado com juízos de valor, então…
Abaixo descrevo conceitos ligados ao zazen Soto que ajudaram a formar minha prática. (Psicologicamente o zazen não é fácil para mim; os budistas falam de um zafu gaki, o zafu infernal, mas, felizmente, ainda não fui apresentada a ele).
Shikantaza
Uma das características mais singulares do zazen da Escola Soto é o conceito de shikantaza: simplesmente sentar-se. Nada de visualizações, mantras ou imersão em koans[3]. Sente-se em seu zafu, orelhas na linha dos ombros, nariz na linha do umbigo, costas eretas, joelhos pressionando o chão e cabeça “tocando o céu”… E mais uma meia dúzia de orientações. Costuma-se repetir que no Zen de Dogen a própria postura é satori. Como diz Taisen Deshimaru Roshi[4]: “O Zen é simplesmente sentar-se, o zen é simplesmente zazen”, tão somente uma prática.
deshi.jpgT.Deshimaru foi,com Shunryu Suzuki, um dos maiores divulgadores do Soto Zen no Ocidente
As explicações formais, no entanto, não me serviram muito quando comecei. Eu queria “entender” o zazen – disposição de espírito, aliás, que não ajuda muito no Zen. Queria processar “qual” a postura mental adequada e “como” eu poderia alcançá-la Eu procurei um mestre, um professor. Os adeptos do Zen não são muito dados a explicações: depois de me descrever a postura e insistir que a única forma de “saber” é não “saber”, mas experimentar pela prática, ele deixou seu recado claro: vá e faça! (Depois que se certificou de minha “seriedade” passou a me indicar leituras).
Mushotoku
A primeira dificuldade com o zazen para mim é que desde criancinha eu (e a torcida do Vasco da Gama) faço as coisas segundo a lógica da causa e efeito – ou melhor, do esforço e recompensa. É, mas eu tive que tirar meu zafuzinho da chuva porque no zazen o satori é mais embaixo.
O zazen deve ser mushotoku, sem meta e sem espírito de proveito. Você deve sentar-se todo dia em seu zafu sem esperar obter nada. Assim, sustenta Taisen Deshimaru, o zazen subverte a educação recebida desde o nascimento: “O zazen não é o Dharma que permite viver no mundo vulgar; é o Dharma, o ensinamento, que permite viver no mundo mais elevado. [...] O satori é perder todo beneficio. É prejudicar-nos.” [5] Para o mestre Kodo Sawaki, o satori (a iluminação budista) consistia em um “dano total, uma perda absoluta”. Temos de perseguir Fuse: o dom sem objetivo pessoal, nem matéria nem espírito.
jiun.jpgIdeograma de Shinnyu feito pelo calígrafo Zen Jiun. O termo significa “natureza essencial”
Hishiryo
Costuma-se repetir que a postura correta promove o espírito (ou mente) correto. Mas, comigo nem sempre é assim. Alcançar a mente hishiryo, àquela que pensa por via do não pensamento ou a “dimensão do pensamento sem consciência”, me pareceu no início algo profundamente esotérico. Ocorre que o Zen não tem nada de obscuro; essa impressão se deve a peculiar gramática doutrinária, a forma dos mestres se expressarem, que inclui a tautologia e a metáfora.
É difícil não se agarrar aos pensamentos, não julgá-los, não seguir seu curso ou então não formatá-los segundo uma lógica especifica, porque fazemos isso há muito tempo; a “natureza” de nosso psiquismo, de nossa subjetividade, é essa, aprendemos desde muito pequenos a pensar assim. Mas no zazen temos de deixá-los surgir e ir embora. Não importa se for um pensamento maluco, genial, um pensamento bom ou ruim; fique empoleirada em cima de um muro imaginário em sua cabeça e veja-os passarem, não fique nem rejeitando, nem se apegando a eles, não julgue, não dualize. Traduzi mês passado Zen e Artes Marciais[6] do Taisen Deshimaru e no livro há um trecho que para mim resume de forma muito precisa, e poética, o zazen:
O reflexo da lua sobre o rio não se move, não flui. Somente a água passa. No zazen, não deveis permanecer sobre um pensamento. [...] Desta maneira podereis encontrar a substancia do ego. No início, se pensais com vossa consciência pessoal, deixai passar. Depois, o subconsciente aparece. Deve-se também deixar passar. O subconsciente também se esgota. Assim, algumas vezes se pensa, algumas vezes não se pensa. Depois, a mente é pura como a lua, como o reflexo da lua que permanece sobre a água do rio.


11081970.JPGA lua de outono em Tamagawa, obra do pintor japonês do século IXX Hiroshige
Pensando e vivendo com todo nosso corpo, concentrados na postura, despertos a cada instante, para além do tempo e do espaço, quem sabe, poderemos passear pelos países e paisagens de nosso inconsciente e por fim poder acessar nossa natureza original. No Shobogenzo de Dogen está escrito: “O que é o zazen? Estar no instante presente, mais além de todas as existências do universo, alcançar a dimensão de Buda e viver nesta dimensão. Zazen é unicamente isto: para além dos budistas e dos não budistas é penetrar nas profundezas da experiência do Buda”.Ku
O “conceito” de Muga é importante no Zen. É a essência do desapego, do deixar ir: sem ego, sem Deus, sem parceiro, sem posses, sem nada. A liberdade do zazen para mim é também solidão; uma solidão assombrosa e eterna – fazer zazen é “praticar a eternidade aqui e agora”. Os mestres dizem que o verdadeiro[7] zazen é como o espelho que reflete todas as formas e todos os fenômenos, mas quando eu estou sentada o primeiro reflexo (e a sombra) que vejo é o meu.
285133_218464164866874_4064125_n.jpgKu, o vazio, é o Sunyata: Sunya quer dizer relativo, interligado. Foto ©Ricardo Borges
Muga está ligado a Ku, o vazio. Ku é o Sunyata sânscrito e reflete não a ausência de algo, mas a ideia de relatividade da existência, que está vinculada tanto a causalidade como à relação com todas as outras existências em uma cadeia sem rompimentos. Está também ligado à mudança, a Mujo, a impermanência. Sunya quer dizer relativo, interligado, dependente. Em zazen entramos em contato com Ku, tomamos “consciência” de que mesmo seguindo Muga somos parte de algo assombrosamente belo e imenso: o corpo de Buda. Percebemos que a hierarquia é uma das maiores ilusões do dualismo. A moral do Zen é absolutamente heterodoxa: ele depurou ainda mais a tendência pouco formalista do Mahayana. “Se cada coisa pode ser o Caminho, a verdadeira felicidade, ninguém pode saber o que realmente representa o bem ou o mal”, diz Deshimaru. O Zen da Escola Soto não é nem maniqueísta, nem sectário. Também não é dogmático; para mim ele estimula a busca de uma “religião” privada.
9th-photocontest-people-8.jpgO zazen revela nossa natureza essencial, afia a espada de Ku, àquela que corta o ego
Genjo
Genjo é o poder e ele só é obtido com a prática contínua do zazen mushotoku. A minha forma de apreciar Genjo é tendo a consciência imediata de quem sou; não a persona social, ou a idealizada por meu ego, mas alguém que se parece muito com a menina que fui por volta dos seis anos. Quando estou em prática rotineira não me sinto dissociada. É como se eu soubesse qual é minha verdadeira natureza, intuitivamente e automaticamente. Genjo destrói o medo e “A doutrina do não medo é como o rugir do leão, dilacera o cérebro dos cem animais que o ouvem”.

……


No Shodoka, O Canto do Satori Imediato[8], um conjunto de poemas escritos por Yoka Daishi (séculos VII-VIII), o autor e seu comentador, Deshimaru, descrevem o zazen como uma ponte entre mundos que dissolve o tempo e o espaço. “A postura do zazen possui o universo inteiro, inclui todas as contradições. Um único zazen pode cortar todo seu carma”.
A concepção do ilimitado de Dogen também subverte o padrão de tempo e espaço: “Se você pratica o zazen um único dia, inteiramente, profundamente, aqui e agora, é como se você praticasse o zazen há cem anos e ajudasse os outros há cem anos”.
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Kendo, a arte por excelência do Budo e do Bushido, encarna a essência do zazen. Foto http://rekishinihon.wordpress.com

Por fim, um trecho de Zen e Artes Marciais de Deshimaru que pode soar familiar a muitos de nós.
È evidente que o pensamento consciente é importante na vida corrente e não se pode fazer com que desapareça. Mas algumas vezes ocorre de se ter a experiência de agir sem pensar, sem consciência, sem ego, espontaneamente, como, por exemplo, na arte, no esporte, ou em qualquer outro ato em que estejam implicados corpo e mente. A ação se produz espontaneamente, antes de qualquer pensamento consciente. É uma ação pura, essência do zazen.

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[1] Choy Li Fut: escola de Kung Fu que combina técnicas de estilos do Sul (golpes fortes de braços e mãos inspirados nas formas animais Shaolin) e do Norte da China (chutes rápidos, movimentos circulares e saltos); foi codificado por Chan Heung no século IXX e é considerado o estilo mais efetivo para um combate com vários oponentes simultâneos.
[2] Dogen Zenji, mestre zen japonês do século XIII, fundador da Escola Soto Zen. Autor do Shobogenzo.
[3] Koan, originalmente lei, princípio de governo. Problema contraditório; questão paradoxal, ou principio de verdade eterna, que os mestres transmitem para meditação.
[4] Taisen Deshimaru (1914-1982) monge Soto Zen fundador da Associação Zen Internacional e considerado o introdutor da Escola no Ocidente.
[5] DESHIMARU, Taisen. O Anel do Caminho. Editora Cultrix/Pensamento, São Paulo, p. 28.
[6] Zen et Arts Martiaux , na edição francesa original da Ed. Seghers e The Zen Way to the Martial Arts, na edição Americana da Ed. Arcana.
[7] Não dualizar, não julgar é um dos preceitos do Zen, no entanto é comum nos textos a utilização – mesmo que parcimoniosa – de adjetivos, pois é muito difícil expressar-se sem emitir um juízo de valor.
[8] Editado no Brasil pela Cultrix/Pensamento; edição esgotada.
 

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