PRAZER,O SUSPEITO DE SEMPRE - REGINA NAVARRO LINS


Foto: Getty Images
Ousar no prazer tende a ser considerado fútil e desnecessário

Você acha que as pessoas realmente procuram o prazer? Procuram as coisas boas, agradáveis, que fazem bem? Duvido muito. Quando numa palestra falo da importância dessa busca, muita gente protesta com ar de censura e a frase feita: “Mas a vida não é só prazer!” Segundo Freud, existem duas formas de o ser humano buscar a felicidade: evitando a dor e o desprazer ou experimentando fortes sensações de prazer. Numa cultura em que sofrimento é virtude, não é de se estranhar a falta de ousadia em se viver de forma verdadeiramente prazerosa. A felicidade e a alegria são vistas como alienação, ao contrário da angústia existencial, que é respeitada.


Mas como ninguém escapa do desprazer, não há motivo de desânimo para os que desejam algum sofrimento. Dor de dente, fazer exame ginecológico ou de próstata, procurar emprego, entrar em fila de banco, ficar preso no engarrafamento... Não é suficiente?
A questão é que quando nascemos somos automaticamente colocados num mundo social em que os padrões de comportamento estão claramente determinados. Entretanto, observamos mudanças significativas nos últimos 50 anos. Podemos até afirmar que o mundo mudou mais da 2a Guerra Mundial para cá do que da Idade da Pedra até a 2a Guerra. A antiga relação das crianças e adolescentes com a família e a sociedade não tem paralelo com o que observamos a partir do século 20. Não havia o sentimento de infância e a visão que se tinha dessa fase da vida era bem diferente.
A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil. Mal adquirindo algum desembaraço físico, a criança era misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos. De quase bebê ela se transformava imediatamente em jovem, sem experimentar ser criança e adolescente. A transmissão dos valores e dos conhecimentos não era assegurada nem controlada pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e durante séculos a educação foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos. Elas aprendiam as coisas que deviam saber ajudando os adultos a fazê-las.
Na realidade, a criança era um empecilho para a mãe na vida conjugal, mas também nos prazeres da vida mundana, já que era muito deselegante cuidar do filho pequeno. Era comum que passasse a viver em outra casa que não de sua família. Muitas vezes os pais entregavam a criança imediatamente à ama, e ela permanecia na casa desta até os quatro ou cinco anos, às vezes até mais. Durante todo esse tempo, os pais parecem não se preocupar com o que acontece com o filho distante.
Com os filhos mais velhos, os pais eram severíssimos. Na França, o estado monárquico garantiu o direito paterno de correção. As prisões públicas acolhiam com facilidade os filhos de família, de qualquer idade e sob os pretextos mais fúteis. Ficavam encarcerados, muitas vezes misturados com prisioneiros condenados por outros crimes. Poderiam ser presos os filhos de menos de 25 anos e as filhas de qualquer idade de artesãos e trabalhadores que maltratassem os pais ou que fossem preguiçosos, libertinos ou corressem o risco de vir a sê-lo. Isso levava a inúmeras arbitrariedades. A prisão era definitiva e os pais não tinham o poder de sustá-la.
Após a revolução industrial, no final do século 18, a área doméstica começa a se opor à área pública. Surge então um tipo de família, denominada burguesa, que cultiva a casa como lar e a necessária privacidade. A visão da mãe como um ser especial faz dela, ao mesmo tempo, a dona de casa dedicada, sofredora e a rainha do lar. Essa é a família que conhecemos. Muitos aspectos estão se transformando, exceto um deles: a criança continua sendo o centro das atenções. É claro que toda essa mudança das mentalidades trouxe grandes vantagens para as crianças. Mas vamos falar de prazer...
Saber descobrir e sentir prazer pode ser um talento e uma arte que precisa ser cultivada. E não é tão simples. Os controles políticos, sociais e religiosos sobre o prazer continuam existindo em todas as partes do mundo. Certos prazeres são aceitos, alguns condenados, outros proibidos mesmo. Não é sem motivo. Controlar os prazeres das pessoas é controlá-las.
Para o psicoterapeuta e escritor paulista José Ângelo Gaiarsa, que exerceu por mais de 50 anos a prática clínica e 30 livros publicados, os sistemas sociais têm sido extremamente coercitivos e restritivos. O que cada sociedade exclui como impróprio, perigoso, inadequado, pecaminoso é exagerado em relação às aptidões humanas, que podem se desenvolver e à compreensão mais abrangente do mundo. De uma maneira geral, o processo de socialização consiste em ensinar às crianças a dizerem que elas estão vendo aquilo que os adultos dizem que estão vendo. As regras fundamentais da socialização levam o indivíduo a não sair da coletividade na qual e da qual ele existe — para não sair do contexto. Depois de cegado e emudecido se pode levá-lo para qualquer lugar que ele não percebe quase nada. Depois de automatizado, serve ao sistema.
O que pais e professores estão fazendo para que seus filhos e alunos não abram mão de suas singularidades, se enquadrando em modelos que limitam suas possibilidades criativas?

Fonte:http://delas.ig.com.br/colunistas/questoesdoamor/

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