SOBRE O ELIXIR DA VIDA ETERNA



Faltavam ainda alguns minutos para a meia-noite, quando Glyndon foi ter novamente ao quarto do místico.

O jovem havia observado escrupulosamente o jejum que lhe fora ordenado; e as intensas e arrebatadoras meditações em que o submergia a sua excitada fantasia, não somente lhe fizera esque­cer as necessidades do corpo, mas até conseguiram que ele se sen­tisse superior a elas.

Mejnour, sentado ao lado do seu discípulo, falou-lhe desta maneira:

— O homem é arrogante à proporção da sua ignorância, e a sua tendência natural é o egoísmo. Na infância do saber, pensa que toda a criação foi feita para ele. Por muitos séculos, viu nos inumeráveis mundos que brilham no espaço, como as borbulhas de um imenso oceano, apenas pequenas velas, que a Providência ha­via-se comprazido em acender como único fim de tornar-nos a noite mais agradável. A astronomia corrigiu esta ilusão da vaidade hu­mana; e o homem, ainda que, com relutância, confessa, agora, que as estrelas são mundos mais vastos e mais formosos do que o nosso mundo, — que a terra, sobre a qual os homens se arrastam, é ape­nas um ponto dificilmente visível no vasto mapa da criação. Po­rém, no pequeno, assim como no grande, Deus pôs a vida igualmente em profusão. O viajor olha a árvore e imagina que os seus ramos foram formados para livrá-lo do ardor dos raios solares no verão, ou para fornecer-lhe o combustível durante os frios do inverno. Mas em cada folha desses ramos, o Criador fez um mundo, que é povoado de inumeráveis raças. Cada gota de água naquele rego é um orbe, mais cheio de seres do que de homens é cheio um reino. Em todas as partes, neste imenso Plano de Existência, a ciência descobre novas vidas. A vida é um princípio que atravessa tudo, e até a coisa que parece morrer e apodrecer, gera nova vida, e dá novas formas à matéria. Raciocinando, pois, por evidente analogia, diremos: Se não há uma folha, nem uma gota de água que não seja, como aquela estrela, um mundo habitável e respirante, — e se até o homem mesmo é um mundo para outras vidas, e milhões e bilhões de seres habitam nas correntes do seu sangue, vivendo no seu corpo como o homem vive na terra, o senso comum (se seus homens eruditos o tivessem) bastaria para ensinar que o infinito circunfluente, ao qual chamam espaço, o ilimitado Impalpável que separa a terra da lua e das estrelas, está também cheio de sua correspondente e apropriada vida. Não é visível absurdo supôs que uma folha está cheia de seres e vida, e que seres vivos não existem nas imensi­dades do espaço? A lei do Grande Sistema não permite que se desperdice um só átomo, nem conhece lugar algum onde não respire algum ser vivo. Até o ossário é um viveiro de produção e anima­ção. É verdade o que digo? Pois bem, se é assim, pode conceber que o espaço, que é o Infinito mesmo, somente seja um deserto sem vida, menos útil ao Plano da Existência Universal, do que o esqueleto de um cão, do que a povoada folha, do que a gota de água, cheia de seres viventes? O microscópio mostra-nos as criaturas na folha; nenhum tubo mecânico foi ainda inventado para descobrir os seres mais nobres e mais adiantados, que povoam o ar ilimitado. Entre estes, porém, e o homem, existe uma misteriosa e terrível afinidade. E, por isso, nascem dos contos e lendas, que não são nem totalmente falsos, nem totalmente verdadeiros, de tempo em tempo, crenças em aparições e espectros. Se estas crenças foram mais comuns entre as tribos primitivas, mais simples do que o homens do seu enfatuado século, é só porque os sentidos daquelas tribos eram mais finos e mais perspicazes. E como o selvagem vê ou percebe, até pelo olfato, a muitas milhas de distância, as pegadas de um inimigo, invisíveis aos embotados sentidos do homem civilizado, assim é menos densa e menos obscura para ele a barreira que se encontra entre ele e as criaturas do mundo aéreo. Escutou-me?

— Com toda a minha alma, — respondeu Glyndon.

— Porém, para penetrar esta barreira, ' continuou Mej­nour, — é preciso que a alma, com que escuta, seja aguçada por um intenso entusiasmo, e purificada de todos os desejos terrestres. Não sem razão os chamados magos de todos os países e de todos os tempos, insistiam sempre sobre a necessidade de castidade e de moderada contemplação, como os mais poderosos elementos da ins­piração. Quando a alma está assim preparada, a ciência pode, de­pois, vir em seu auxílio; a vista se torna mais sutil, os nervos mais agudos, o espírito mais ativo e penetrante, e até os elementos, o ar, o espaço, — por meio de certos segredos da química supe­rior, podem tornar-se mais palpáveis e claros. E também isto não é magia, no sentido que a esta palavra dão os crédulos; pois, como já lhe disse tantas vezes, a magia, — se com este termo se pensa em uma ciência que viola a Natureza, — não existe; ela é apenas a ciência com que as forças da Natureza podem ser dirigidas, domi­nadas e aproveitadas. Ora, no espaço há milhões de seres, não literalmente espirituais, pois que têm todos, como os animálculos in­visíveis ao olho nu, certas formas de matéria, se bem que tão delicada sutil, que parece não ser mais do que uma película uma penugem que cobre o espírito. Daí nascem os belos fantasmas rosacrucianos de silfos e gnomos. Sem embargo, essas raças e tribus diferem mais entre si, do que o kalmuk do grego, em suas formas, seus atributos e poderes. Na gota de água, vê como são variados os animálculos, como grandes e terríveis são alguns desses microscópios vermes-monstros em comparação a outros. Igualmente, dentre os habitantes da atmosfera, alguns há que possuem um alto grau de sabedoria, e outros são dotados de uma horrível malignidade; alguns são hostis aos homens, porque são seus inimigos; ao passo que outros lhe são afáveis, e servem de mensageiros entre a terra e o céu. Quem pre­tende entrar em relações com estes divinos seres, assemelha-se ao via­jante que, querendo penetrar em países desconhecidos, se expõe a estranhos perigos e incalculáveis terrores. Quando tiver entrado nestas relações; não poderei livrá-lo dos incidentes a que o seu ca­minho o expõe. Não posso dirigi-lo por sendas onde não encontre alguns desses mortais e terríveis inimigos. Há de fazer-lhe frente você mesmo, e sozinho. Porém, se aprecia tanto a sua vida, que somente queira prolongar a sua existência, não importa para que fins, reparando a força dos seus nervos e a frescura do seu sangue com o elixir vivificados do alquimista, por que deve buscar as relações com esses seres intermediários e expôr-se aos perigos que resultam? Por­que o homem poderia atrair sobre si. Por isso, embora o elixir seja vida, aguça os sentidos de tal maneira, que essas larvas que povoam o ar, se ouvem e se vêem. Enquanto não tiver exercitado suficiente­mente a poder gradualmente, acostumar-se a não se perturbar pelo aparecimento desses fantasmas, e a dominar a sua malícia, uma vida, dotada destas forças e capacidades, seria a mais horrível sentença que o homem poderia atrair sobre si. Por isso, embora o elixir seja composto de ervas muito simples, pode recebê-lo só quem tenha passado já pelas provas mais sutis. Alguns, sobressaltados por um insuportável horror ante os objetos que se apresentaram à sua vista ao primeiro gole do milagroso líquido, acharam que a poção era me­nos poderosa para salvar, do que a agonia e o trabalho da Natureza para destruir. Assim é que, para os que não estão preparados, o elixir não é mais do que um veneno mortífero. Entre os morado­res do umbral há também um, que, em sua malignidade e ódio, ex­cede a toda a sua tribo, — um, cujos olhos têm paralisado os ho­mens mais intrépidos, e cujo poder sobre o espírito humano. au­menta, precisamente, à proporção do temor que inspira. Vacila a sua coragem?

— Oh, não! — respondeu Glyndon. — Pelo contrário, as suas palavras não fazem mais do que inflamá-la.

— Então, — ordenou Mejnour, — siga-me; vou submetê-lo aos trabalhos de iniciação.


E Mejnour conduziu o discípulo ao quarto interior, onde lhe explicou certas operações químicas, as quais, como Glyndon logo compreendeu, apesar de serem "muitíssimo simples, eram capazes de produzir resultados extraordinários.

— Nos tempos remotos, — prosseguiu Mejnour, sorrindo, — a nossa irmandade via-se, com freqüência, obrigada a recorrer ao engano, para encobrir a realidade; e, como os seus adeptos eram des­tros mecânicos ou peritos químicos, dava-se-lhes o nome de feiticei­ros. Observe como é fácil compor o Espectro de Leão, que acompa­nhava o célebre Leonardo da Vinci!

E Glyndon viu, com deliciosa surpresa, os simples meios que bastavam para produzir as mais singulares ilusões da imaginação. As mágicas paisagens que deleitavam Baptista Porta; a aparente mu­dança das estações com que Alberto Magno surpreendeu o Conde de Holanda; e até aquelas terríveis visões de Espíritos e Imagens com que os necromantes de Heracléa alarmaram a consciência do conquistador de Platéa (*), — tudo isto Mejnour mostrou ao dis­cípulo, assim como o fazem os homens que, com a lanterna mágica e a fantasmagoria, encantam medrosas crianças, na véspera no Natal.

— E agora, que você viu, ria-se da magia. Se estes brinquedos, estes enganos, divertimentos e frivolidades da ciência eram aquelas coisas tão terríveis que os homens olhavam com repugnância, e que os reis e os inquisidores premiavam com a roda ou coma estaca!

— Porém, a transmutação de metais, de que falam os alquimistas? — perguntou Glyndon.

— A Natureza mesma — respondeu Mejnour — é um laboratório, onde os metais, e todos os elementos, estão continuamente em transmutação.É fácil fazer ouro, e mais fácil ainda, e mais cômodo e mais barato, é fazer-se pérolas, diamantes e rubis. Oh, sim! homens sábios consideraram também isto como feitiçaria; mas não acharam nada de feitiçaria no descobrir que, pelas mais simples combinações de coisas de uso quotidiano, poderiam criar um demônio que arrebatasse a milhares as vidas de seus semelhantes, por meio de um fogo consumidor. Descubra coisas que destruam a vida, e será um grande homem! — ache, porém, um meio de pro­longar a vida, e chamar-lhe-ão impostor! Invente alguma máquina que torne mais ricos os ricos e que aumente a pobreza dos pobres, e a sociedade levantará para si um monumento! Descubra algum mistério na arte, que faça desaparecer as desigualdades físicas, e morrerá apedrejado! Ah! ah! meu discípulo! este é o mundo pelo qual Zanoni ainda se interessa! — Você, porém, e eu, deixaremos este mundo entregue a si mesmo. E agora, que presenciou alguns dos efeitos da ciência, comece a aprender a sua gramática.

Mejnour pôs, em seguida, diante do seu discípulo certos trabalhos, nos quais empregou este o resto da noite.



. . .

Quase sem analisar os processos mentais por que os seus ner­vos se alentavam e as suas pernas se moviam, o jovem atravessou o corredor, dirigiu-se ao quarto de Mejnour e abriu a porta proibida.

Tudo ali estava da mesma forma como de costume; apenas, sobre a mesa no centro do quarto, via-se aberto um volumoso livro. Glyndon aproximou-se dele e olhou os caracteres que a página lhe oferecia; eram escritos em cifras, cujo estudo fizera uma parte de seus trabalhos. Sem que lhe custasse grande dificuldade, pareceu-lhe que podia interpretar o significado das primeiras sentenças, onde lia:

"Sorver a vida interna é, ver a vida externa; viver desa­fiando o tempo, é viver no todo. Quem descobre o elixir, descobre o que há no espaço, pois o espírito que vivifica o corpo, fortalece os sentidos. Há atração no princípio elemental da luz. Nas lâmpadas dos Rosas-Cruzes, o fogo é o puro princípio elemental. Acenda as lâmpadas enquanto abre o vaso que contém o elixir, e a luz atrairá os seres cuja vida é aquela luz. Guarde-se do Medo. O Medo é o inimi­go mortal da ciência".

Aqui as cifras mudaram de caráter e tornaram-se incompreen­síveis para Glyndon. Porém, não havia lido já bastante?

. . .

Glyndon colocou a sua lâmpada ao lado do livro, que ainda estava ali aberto; virou umas fôlhas e outras, porém sem poder de­cifrar o seu significado, até que chegou ao trecho seguinte:
“Quando, pois, o discípulo está desta maneira iniciado e preparado, deve abrir a janela, acender as lâmpadas e umedecer as suas fontes com o elixir. Mas que tenha o cuida­do de não se atrever a tomar muita coisa do volátil e fogoso espírito. Prová-lo, antes que, por meio de repetidas inala­ções, o corpo se haja acostumado gradualmente ao extático liquido, é buscar, não a vida, mas sim a morte.”


Excerto do livro de E. Bulwer Lytton, “Zanoni”
Fonte:Célia Barcellos-http://holosgaia.blogspot.com/

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