O ACASO E A NECESSIDADE - RESENHAS DE LIVROS





Pilares do tempo – Ciência e religião na plenitude da vida 
Autor: Stephen Jay Gould 
Editora Rocco, 2002
185 páginas


O rio que saía do Éden – uma visão darwiniana da vida 

Autor: Richard Dawkins 
Editora Rocco, 1996
150 páginas







“No princípio era o verbo”. E do verbo nasceram as primeiras explicações racionais para a existência do mundo, da vida, da humanidade. Eram explicações racionais, mas não científicas, as que procuraram dar conta das questões que a mente humana, aparentemente, não deixa de se fazer desde os primórdios da cultura e da civilização. Com o surgimento da ciência moderna, essas questões parecem ter encontrado a melhor formulação e o melhor método para respondê-las. Nesse sentido, a ciência teria ocupado o lugar que antes era reservado à religião. Mas será que as duas podem, de fato, ser consideradas concorrentes? Ou, por outro lado, existe uma síntese possível?
Nessa discussão, como em outras, Richard Dawkins e Stephen Jay Gould, dois dos maiores divulgadores contemporâneos da ciência, se colocam em pólos em confronto. Em O rio que saía do Éden – uma visão darwiniana da vida, o rio de Dawkins percorre o tempo, da criação da vida à evolução e à pré-história humanas, tendo como foco os genes e sua transmissão de geração em geração. O rio flui rumo ao passado e ao futuro, e desdobra a vida do ancestral comum de todos os seres vivos numa multiplicidade de afluentes, cujas margens se confundem com as diversas barreiras que separam as espécies. O rio é uma metáfora para a “função de utilidade da vida”: a sobrevivência e a transmissão do ácido desoxirribonucléico, o DNA, a que Dawkins já havia se referido como a molécula “mais impressionante do mundo”, por ser capaz de comandar a própria replicação, em A escalada do monte improvável (Companhia das Letras, 1996).
De certa forma, como o próprio Dawkins admite no prefácio, a maioria de seus livros consiste em variações sobre um mesmo tema, o poder explicativo, a simplicidade, a elegância, a generalidade da seleção natural, a “perigosa idéia de Darwin” – para fazer referência à obra de seu amigo igualmente fascinado pelo tema, o filósofo Daniel Dennett, autor de livro homônimo. De fato, de metáfora em metáfora, Dawkins se constituiu no mais incisivo ? e polêmico ? defensor do princípio darwiniano e da teoria neodarwinista. A polêmica em torno de sua obra reside no fato de que, desde O gene egoísta, o autor defende que os organismos não passam de veículos, robôs ou máquinas de sobrevivência por meio das quais os genes procuram maximizar sua própria transmissão de geração em geração. Essa abordagem é considerada reducionista, pois sugere que os genes, no lugar dos organismos, representem a unidade sobre a qual a evolução opera. Pior que isso, ela é também considerada determinista, ainda que Dawkins, em outro livro  The extended phenotype: the long reach of the gene (O fenótipo estendido: o longo alcance dos genes, não-traduzido para o português) , tenha declarado a intenção de combater o determinismo e não desconheça, certamente, as descobertas recentes da biologia molecular. Leitor declarado de O acaso e a necessidade, de Jacques Monod (co-descobridor do operon lac, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina), que em 1971 alertava para o fato de que apenas a estrutura primária das proteínas, ou seja, sua seqüência característica de aminoácidos, está codificada nos genes.

O livro todo dialoga com a Bíblia e o cristianismo, embora o quarto capítulo, que discute a função de utilidade de Deus, faça a referência mais explícita. Para examiná-la, são apresentados diversos exemplos em que a natureza parece má, cruel ou, ao menos, ambígua, colocando a existência de Deus, sua onipotência ou sua suprema bondade em maus lençóis. Poderia haver um Deus das chitas (predadores) e Outro dos antílopes (presas)? “De modo alternativo, se há apenas um Criador que fez o tigre e o cordeiro, a chita e a gazela, aonde Ele quer chegar? Será Ele um sádico que se deleita em ser espectador de esportes sangrentos? Estará Ele tentando evitar uma superpopulação entre os mamíferos da África? Estará Ele manobrando para maximizar os índices televisivos de David Attenborough? Todas estas seriam funções de utilidade que poderiam se mostrar verdadeiras. Na verdade, naturalmente, elas estão todas completamente erradas”.

Afinal, “agora entendemos a única função de utilidade da vida com grande detalhe e ela não se parece com nenhuma destas”. O texto que se insinua, todo o tempo, pelas entrelinhas: a explicação científica é superior à que lhe serve de metáfora; além disso é a única verdadeira. Stephen Jay Gould discordaria da afirmação, como de fato fez em Pilares do tempo – Ciência e religião na plenitude da vida. Para ele, ciência e religião pertencem a diferentes regimes de verdade, constituem magistérios não-interferentes. “Cada área de investigação emoldura suas próprias regras e suas próprias questões admissíveis, estabelecendo critérios próprios para o julgamento e a solução. Esses padrões aceitos, e os procedimentos desenvolvidos para debater e resolver questões legítimas, definem o magistério - ou a autoridade de ensino - de qualquer objeto.”
Não faz sentido, portanto, a postura de seu colega britânico, que tenta sobrepor o magistério da ciência ao da religião, como não faz sentido tentar unificá-las: “Não vejo como a ciência e a religião podem ser unificadas, ou mesmo sintetizadas, sob qualquer esquema comum de explicação ou análise; mas tampouco entendo por que as duas experiências devem ser conflitantes. A ciência tenta documentar o caráter factual do mundo natural, desenvolvendo teorias que coordenem e expliquem esses fatos. A religião, por sua vez, opera na esfera igualmente importante, mas completamente diferente, dos desígnios, significados e valores humanos - assuntos que a esfera factual da ciência pode até esclarecer, mas nunca solucionar. De modo semelhante, enquanto os cientistas devem agir segundo princípios éticos, alguns específicos à sua profissão, a validade desses princípios nunca pode ser deduzida das descobertas factuais da ciência”.
Gould tem razão. Da observação dos fenômenos naturais não se pode extrair nenhuma moral, nenhuma ética. As noções de bom e mau, Bem e Mal são assunto de outro magistério, o que trata de problemas morais sobre o valor e o significado da vida, “muito mais antigo do que a ciência (pelo menos como investigação formalizada) e dedicado à busca do consenso, ou ao menos de um esclarecimento de pressuposições e critérios, a respeito do “dever ser” ético, mais do que uma busca de um “é” factual em relação à construção do mundo natural”. As humanidades (filosofia, história, literatura etc) fazem parte dele, mas, segundo Gould, na instituição denominada religião concentrou-se, em diversas sociedades humanas, o discurso pertinente a esse magistério.
Uma “lista superficial” de questões para as quais a ciência só é capaz de fornecer parte da resposta poderia “encher um grande livro”. Em relação aos outros seres vivos, por exemplo, “somos melhores do que as baratas ou as bactérias devido ao fato de termos desenvolvido uma neurologia muito mais complexa? Em que condições (se é que existem) temos o direito de conduzir outras espécies à extinção ao eliminar seus hábitats naturais? Violamos algum código moral quando usamos a tecnologia genética para colocar o gene de uma criatura no genoma de outra espécie?”. Os dados factuais não podem resolver nem, muitas vezes, esclarecer sobre as preocupações embutidas nessas perguntas.
No entanto, a abordagem humana usual de problemas complexos tende a trilhar o caminho da dicotomia, conceituando questões complexas em termos de pares “ou isto/ou aquilo”, extremos que não se encontram no caminho do meio (a aurea mediocritas de Aristóteles). Assim, diante de questões em que ciência e religião oferecem diferentes respostas, “partimos do pressuposto de que deve haver duas soluções extremas: que a ciência e a religião devem lutar até a morte, uma saindo vitoriosa e a outra derrotada; que as duas devem representar a mesma busca, podendo portanto ser integradas uma à outra completa e facilmente, formando uma grande síntese.”
Gould não temeu expor parte de sua trajetória pessoal - ele pertencia a uma família judia - para justificar seu interesse pelo tema e sua posição dentro do debate em torno dele. Ele também recorre às histórias de vida de Charles Darwin e Thomas H. Huxley, seu buldogue, para mostrar o princípio de não-interferência respeitosa em ação. Os dois perderam precocemente os filhos favoritos em circunstâncias dolorosas e, mesmo no momento mais agudo da dor, se recusaram a confundir ciência e religião na resposta à pergunta que, certamente, atormentou a mente de cada um: por que seus filhos haviam morrido naquelas circunstâncias?
Com a conhecida erudição e da escrita contundente, destilada em quase trinta anos de colaboração com a revista Natural History, Gould abre o livro com a história de São Tomé, o cético, o incrédulo, e a “invasão imprópria”, no final do século XVII, do magistério da ciência pelo reverendo Thomas Burnet (de quem já se havia ocupado no fascinanteSeta do tempo, ciclo do tempo). Ele revisita o episódio Galileu Galilei x Maffeo Barberini (papa Urbano VIII) para, à luz de seus desdobramentos, analisar a recepção, no século XX, das encíclicas papais Humani Generis(1950), de Pio XII, e Fides et Ratio, de João Paulo II. Gould recorre, ainda, a diversos outros episódios da história para defender que cada macaco deve ficar no próprio galho.

Fonte : Flávia Natercia-http://www.comciencia.br/resenhas


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