GEORGE HARRISON-O BEATLE QUE NOS APRESENTOU O ORIENTE




Olhos escuros, rosto alongado, expressão profunda. Desde criança George Harold Harrison tinha esse ar grave, misterioso, depois realçado pela descoberta da meditação transcendental e pelo encontro definitivo com o misticismo oriental. Introspectivo, normalmente calado, George tinha, no entanto, tiradas que desarmavam o ouvinte, reveladoras de um humor no mínimo peculiar. Quando a polícia deu uma batida em sua casa, ele informou sarcasticamente: “Sou um cara organizado: guardo as meias na caixa de meias e as drogas na caixa de drogas”. Era tímido também, de uma timidez que podia se confundir com arrogância, mas que, na verdade, escondia boa dose de autoconfiança.

Seus pais o incentivavam moderadamente. O pai, um ex-marinheiro que se tornou motorista de ônibus só para ficar mais perto dos quatro filhos, tinha o mesmo semblante sério do caçula George. A mãe, professora de dança de salão, era mais expansiva e costumava cantar pela casa e ouvir muitos discos, o que influenciou bastante o filho rebelde. Na escola, George desafiava as regras e usava a gravata ao contrário, um topete moldado com muita brilhantina e sapatos de camurça azul, os blue suede shoes do ídolo Carl Perkins. Matava as aulas para fumar nas esquinas e sonhar com o rock’n’roll de Elvis Presley, que ouviu na casa de um amigo. O filme da sua vida estava para começar.

Foi com esse mesmo amigo que começou a tocar violão religiosamente e fundou a sofrível banda The Rebels, com apenas 14 anos. Chegaram a se apresentar ao vivo, por um caneco de cerveja cada. Segundo o então parceiro Arthur Kelly, George já era capaz de tocar as passagens mais difíceis, tal como os grandes guitarristas da época. Foi nesse momento que conheceu Paul McCartney no ônibus que ia para a escola. Apesar de Paul ser mais velho, ficaram logo muito próximos, até que George foi convidado a assistir uma apresentação dos Quarry Men.

Início e fim dos Beatles John Lennon, o líder do grupo, não ficou muito impressionado com aquele colegial franzino de olhar espantado. Mas bastou que George tocasse uma música para que o líder se convencesse e o “contratasse”. Com o tempo, os Quarry Men ganharam asas e tornaram-se os Beatles, fazendo shows todas as noites, a base de entusiasmo, talento e anfetaminas.

Foi de George, e não da dupla Lennon e McCartney, a primeira gravação original feita pelos Beatles. Tudo bem que Cry for a Shadow, gravada na Alemanha, era apenas um exercício instrumental sem importância e que George, então com 18 anos, recebeu uma ajuda de John – mas a gravação valeu como marco.

Se George teve muito a ver com o início criativo do grupo, foi também de sua autoria a música que marcou o fim dos Beatles. I Me Mine foi a última gravação feita pela banda, a essa altura (1970) em frangalhos. Paul tentava manter a chama acesa a todo custo; George ressentia-se com a condescendência de Paul; Ringo entediava-se com as constantes discussões; e John não aceitava a rejeição do grupo com relação a Yoko – ele sequer participou dessa última gravação. Ao falar de egoísmo, a letra da canção retratava o espírito perdido do conjunto. Oito dias depois do registro de I Me Mine”, Paul anunciou o fim da banda.

Nos pouco mais de dez anos de existência, os Beatles praticamente estabeleceram todos os novos parâmetros do rock e do pop. George tinha sua cota como cantor e autor em uma ou duas faixas por disco da banda e foi conquistando seu espaço com canções cada vez melhores. Alguns dos maiores clássicos dos Beatles são de sua autoria: a energética Taxman, que abre o Revolver, a bela e singela Here Comes the Sun e Something, considerada por Frank Sinatra “a mais bela canção de amor dos últimos 50 anos”.

Como guitarrista, George diferenciava-se pelo uso elegante da slide guitar, que produz um som alongado, choroso. Dois momentos nesse período parecem ter sido especialmente marcantes para que George começasse a finalmen-te ganhar voz própria e libertar-se da sombra incômoda dos egos enormes de John e Paul. Um deles foi quando experimentou LSD pela primeira vez. A experiência transformou sua vida, e parece ter mesmo “expandido sua consciência”, como pregavam os teóricos hippies da época.

O outro momento foi quando, em 1966, foi com a mulher, a modelo Pattie Boyd, para a Índia, onde ficou hospedado na casa de Ravi Shankar, a quem conhecera numa festa dada pelo diretor e ator Peter Sellers. Iniciaram uma amizade que seria responsável em grande parte pela popularização da cultura indiana no Ocidente. Shankar não apenas lhe ensinou a tocar cítara, como foi decisivo na conversão espiritual do amigo. Foi depois desse encontro iluminador que os Beatles foram à Índia meditar sob os auspícios de Maharishi Maheshi Yogi, um guru de longos cabelos, barbas brancas e sorriso curioso.

Expansão da menteAntes mesmo de conhecer Shankar, George já havia colocado os sons encantatórios da cítara na gravação de Norwegian Wood. Tudo muito por acaso: depois de ver alguns músicos indianos nas filmagens de Help! (1965), ele resolveu experimen tar o instrumento. Comprou um bem barato numa lojinha em Londres e arriscou-se sem manual na posição desconfortável que a cítara exigia. Foi descobrindo as notas e fez de Norwegian Wood a primeira música pop com sabor indiano. Within You Without You, para alguns a melhor faixa do Sgt. Pepper’s (1967), para outros a mais deslocada, foi a evolução natural. Com sua melodia sinuosa e conotação filosófica, levava o ouvinte a um breve estado de transe, próximo da meditação transcendental que George tanto praticava.

A ioga, as batas, os incensos e o I-Ching também faziam parte desse novo universo místico de Harrison. Foi quando abriu o livro milenar ao acaso e bateu os olhos na frase “gentle weeps” que teve a inspiração para compor uma de suas melhores canções com os Beatles. A gravação de While My Guitar Gently Weeps não foi tão simples, porém. Dos quatro George talvez fosse o mais perfeccionista. Buscava não apenas a beleza harmônica, mas um tipo de revelação através da música. Havia certo descaso com suas composições, contudo – George era, afinal, o caçula. Insatisfeito com a gravação, ele insistiu com o produtor George Martin e refez a canção do jeito que queria, incluindo a participação tornada mítica do amigo Eric Clapton (que depois lhe “roubaria” a mulher, Pattie – mas essa é outra história).

Cantor humanitário Essa irredutibilidade, ou personalidade forte, de certa forma rimava com os traços firmes e o jeito introspectivo do músico. Em retrospecto, não parece à toa que George fosse responsável pelo começo simbólico e pelo fim do sonho que embalou todas as gerações a partir de 1961. E que tenha sido também ele, o beatle silencioso, quem fez maior barulho logo após o rompimento, em 1970. O álbum triplo (triplo!) All Things Must Pass, composto de canções que ele represou ao longo de sua convivência difícil nos Beatles, foi um sucesso absoluto de crítica e público. O single My Sweet Lord, um mantra de melodia irresistível, foi alçado ao Olimpo do pop, atingindo o primeiro lugar nas paradas de vários países do mundo, inclusive os Estados Unidos. Emocionado quando ouviu a canção, o cético Lennon chegou a comentar: “Estou começando".

Ápice do envolvimento de George com a espiritualidade indiana, o famoso fraseado de sua guitarra chorosa, que marca a música com a gentileza de um haikai num papiro, parece dirigir-se diretamente a Krishna, mas de forma que todos a ouvissem. A produção de Phil Spector, com uso de coros e baterias, fez com que a música soasse grandiosa sem perder a simplicidade. Talvez venha daí o segredo de George: a forma gentil e sincera de despertar os sentimentos.

E foi com esse espírito que preparou em seguida o grande (e emocionante) Concerto para Bangladesh (1971), país que vinha sendo devastado pela miséria e guerra civil. George chamou os amigos Bob Dylan, Ravi Shankar, Eric Clapton e Ringo Starr, entre muitos outros, e realizou o primeiro concerto beneficente da história, reservando todos os lucros para a Unicef e a causa que tinha abraçado (envolvido com a religião Hare Krishna até o fim da vida, e baseado em seus princípios humanitários, George viria a criar afundação beneficente Material World).

Lançou mais um disco de enorme sucesso, Living in the Material World (1973), com outro número 1 nas paradas, Give Me Love (Give Me Peace on Earth), e a partir daí sua carreira teve altos e baixos e também uma diversidade de atividades: aprimorou-se na jardinagemzen que praticava (vide o jardim da capa de All Things Must Pass), passou a freqüentar corridas de Fórmula 1 e tornou-se produtor cinematográfico, envolvendo-se com o pessoal do Monty Python, grupo humorístico inglês, para quem produziu A Vida de Brian (1979).

Em 1999, num lance bizarro, sobreviveu às várias facadas de um intruso em sua casa – foi salvo pela segunda mulher, Olívia. Antes mesmo desse incidente quase fatal, ele já vinha combatendo um câncer. Sabendo que iria morrer, gravou em 2001, com ajuda do único filho, Dhani, um último disco, Brainwashed, que acabou se tornando um de seus melhores trabalhos. Iluminado por estóica serenidade e até leveza, o CD revela a atitude única de George diante da morte – chega a dar a impressão de que ele canta as músicas sorrindo. Ao fim, ele faz ecoar o mantra: “Shiva Shiva Shankara Mahadeva...a achar que existe um Deus”.



Autor : Manoel Benevides-Revista Vida Simples

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